A “operação especial de prevenção criminal” da PSP na Rua do Benformoso colocou, a 19 de dezembro de 2024, dezenas de pessoas encostadas à parede e de mãos no ar para serem revistadas, e Marco Martins reconhece que aquele acontecimento teve um impacto em si, “ainda por cima em vésperas de Natal”.
O que aconteceu foi “paradigmático de uma forma contemporânea e muito atual de olhar para a imigração”, notou o encenador, em conversa com a Lusa, antes de um ensaio da peça “Um inimigo do povo”, inspirada na obra com o mesmo nome de Henrik Ibsen, e que toma por referência a operação policial desencadeada numa zona, a Mouraria, habitada maioritariamente por imigrantes do subcontinente asiático.
A Marco Martins aconteceu-lhe o que lhe acontece muitas vezes: ficar curioso sobre uma determinada comunidade a partir de um acontecimento real.
“Também eu, no fundo, sabia muito pouco sobre aquela comunidade”, constatou, recuando aos tempos de estudo em Nova Iorque (Estados Unidos), quando ficara “muito espantado e ofendido (…) com o pouco que aquelas pessoas sabiam sobre Portugal”.
Durante os ensaios da peça — com estreia marcada para 13 de dezembro, no Theatro Circo, em Braga –, o encenador fez um exercício e comprovou que, assim como os nova-iorquinos não sabiam apontar Portugal no mapa, também os portugueses dificilmente conseguem identificar onde fica o Bangladesh.
Marco Martins foi “à procura das pessoas que estavam contra a parede”, mas foi “muito difícil” localizá-las, “porque o medo estava instalado e tinha havido uma certa perseguição”.
Porém, o encenador e a sua equipa de investigação, que inclui duas jornalistas (Joana Pereira Bastos e Raquel Moleiro), descobriram que havia na Rua do Benformoso quem estivesse disposto a subir a palco, e o elenco da peça passou a integrar dez homens e mulheres originários de Bangladesh, Índia e Nepal.
O teatro pode ser esse lugar de fala, pois o palco “é um lugar para ser visto”, situa, notando que o tempo que vivemos é marcado por “uma certa desumanização” de pessoas e comunidades.
“Falamos como se fosse tudo igual” e como se aquelas pessoas não tivessem uma identidade, lamenta Marco Martins, notando que a operação policial na Rua do Benformoso foi “muito simbólica” por “aquelas pessoas não terem cara”, já que estavam viradas contra a parede, e “não terem voz”.
“Não há uma presença nas estruturas sociais de pessoas daquelas comunidades. Existe, mas é muito marginal. E o que nós sabemos sobre aquelas comunidades de imigrantes é muito pouco”, observa, notando que é isso que “faz com que o seu discurso seja constantemente manipulado, não só, obviamente, pelos grupos de extrema-direita, mas também à esquerda, ao centro, [por] toda a gente”.
Ora, comunidades sem voz são comunidades sujeitas “à manipulação da sua própria identidade”, que passa a ser apenas construída pelos outros.
Perante isso, foi à procura de saber quem são estas pessoas “que de repente parecem ser os causadores de todos os males sociais e que estão no centro do discurso político, não só em Portugal, mas no mundo inteiro”.
E já tem para a troca uma experiência bem diferente. “Começámos a frequentar festas de anos e as casas das pessoas”, relata, destacando que, apesar de “pouco integradas”, as pessoas do subcontinente asiático que conheceu têm “uma grande vontade de fazer parte”.
Marco Martins vai destacar as “muitas leituras possíveis” de um tema que sabe ser controverso: “A imigração não é branco nem preto, não é boa nem má, tem muitas facetas, há muitas questões, mas acho que a questão fundamental é que são seres humanos, como nós, com famílias, com vidas.”
A constatação de que existem “imigrantes de primeira e imigrantes de segunda (…) é completamente abjeta”, critica, dando como exemplo quem vem com vistos ‘gold’ e quem vem para trabalhar em restaurantes ou estufas.
Interpretado em português, inglês, bengali e outras línguas, “Um inimigo do povo” subirá a palco nos dias 13 e 14 de dezembro no Theatro Circo, no âmbito de Braga Capital da Cultura 25.
No próximo ano será a vez do Porto (Teatro Municipal Rivoli, 16 e 17 de janeiro) e de Lisboa (Centro Cultural de Belém, 13 a 15 de março).
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